O Clã do Paralelo 30
Pacto de Sangue
Começou a ventar de repente. O céu, coberto por nuvens e esparsos relâmpagos que apareciam somente em clarões, era de um negro ameaçador. Os eucaliptos dançavam ao sabor do vento que assobiava quando tocava as folhas. Aos poucos, o cheiro de terra molhada, juntamente com o cheiro da maresia era trazido até as narinas dos dois rapazes.
Jeferson, que tinha planejado o ritual há vários meses, não iria desistir logo naquela noite ameaçadora. Para ele, até parecia um presente de alguma entidade espiritual, tornando a noite mais lúgubre e atraente, para que a cerimônia fosse mais significativa. Os olhos verdes buscavam, no firmamento nebuloso, uma imagem da lua cheia em vão.
Juliano estava inquieto. Os cabelos castanhos claros e longos, soltos estavam sendo açoitados pela ventania. O seu corpo sentia um frio incomum, talvez pela ansiedade da véspera do rito, ou, talvez, por medo, de fazer uma coisa nova. Sabia que a chuva cairia logo, logo e ainda faltavam algumas horas para a meia-noite.
Os dois amigos planejaram tudo com meses de antecedência. Sempre foram fascinados pela vida eterna e pela imagem que os vampiros tinham no consciente coletivo. Para Jeferson, narcisista assumido, era a chance de ficar jovem e bonito através dos anos. Para Juliano, a idéia da vida eterna era atraente, mas, na verdade, ele tinha sido influenciado pelo melhor amigo, e irmão, como eles próprios se chamavam, e concordou em realizar a cerimônia para não perder a simpatia do outro.
Os dois entraram na barraca e, no escuro, iluminados somente por uma lanterna, repassaram, pele enésima vez, todos os passos do cerimonial. Juliano, até aquela data, não sabia como Jéferson tinha conseguido o arquivo do famoso e mitológico livro “Manual Pratico do Vampirismo”. Para ele, não passava mais de uma idéia excêntrica, pois, a sua mente lógica, negava a existência de tais seres. Era tudo uma fantasia que a literatura, o cinema e a televisão criaram. Seres lindos e sedutores, que usavam desse “sex appeal” para se alimentarem de mulheres lindas e sensuais.
Eles beberam as duas garrafas de vinho, das quatro que tinham levado para trás do seminário. Quando chegaram e procuraram uma clareira entre a mata dos eucaliptos, encontraram várias velas e outros pertences de cerimônias de umbanda. Com esses vestígios, sabiam que ali, atrás de um seminário de Osório, era um local para a prática da magia da transformação. Um solo sagrado.
O celular anunciou exatos quinze minutos para a meia-noite. Eles tiraram as roupas e rumaram, completamente nus, para o lugar onde haviam deixado todos os objetos preparados. A chuva começava a castigar a pele deles, cada vez mais. Como se fosse uma despedida do mundo real, que eles acreditavam que deixariam para trás, eles caminharam até perto de uma estátua de Nossa Senhora que ficava atrás do seminário. Ficaram a uma distância segura para que as luzes do local, não os denunciassem. Controlando tudo pelo relógio de pulso de Juliano, ficaram ali, até cinco minutos antes da meia-noite.
Enquanto eram banhados pela chuva torrencial, eles ficaram em silêncio, lado a lado, imersos em seus próprios pensamentos. A terra sob os seus pés já havia se tornado uma lama mole e pegajosa que passava entre os dedos.
Durante o ritual, eles protegeram os cálices, as velas, a caveira e a faca nova com um pedaço de papelão que haviam encontrado entre o lixo que as pessoas deixam para trás quando vão acampar lá, coisa que é proibido. Ao final, eles se olharam e Jeferson pegou a faca que tinha sido preparada e cortou a palma da sua mão direita. Pegou a mesma mão de Juliano e cortou também.
- A partir de hoje, morreremos e renasceremos diferentes dos outros – disse Jéferson -. E, vamos misturar o nosso sangue para que a gente seja irmãos para toda a eternidade. Para que nem a nossa morte física, muito menos o nosso renascimento, nos separe, nunca.
As mãos ensangüentadas se uniram. Como se fosse uma resposta dos céus, os relâmpagos e o vento se tornaram mais fortes. As árvores quase vergavam para perto do chão com a fúria dos elementos da natureza.
O Acidente
Outubro de 2004
Juliano sentiu o teto do carro esquentar. Olhou pela janela de vidro quebrado e via as faíscas do atrito do metal no asfalto. Ouvia os gritos de desespero dos outros ocupantes do carro que estavam sentados no banco de trás, Rodrigo, seu amigo e companheiro de trabalho e Rafael, seu irmão.
Quando o carro parou, eles conseguiram, instintivamente, sair do veículo quase que completamente destruído. Os quatro olhavam para a fila de automóveis que havia se formado. A polícia rodoviária chegou pouco tempo depois, juntamente com uma ambulância, que os levou para um hospital.
Todos os quatro haviam escapado, milagrosamente, ilesos. Somente Rodrigo havia machucado o ombro esquerdo, pois o calor do teto gerado pela fricção contra o asfalto, o havia queimado. Nem Rafael, nem Jéferson e nem Juliano tiveram qualquer escoriações.
Nos dias que se seguiram após a capotagem, eles se encontraram e marcaram aquela data, dia dezessete de outubro, como um marco na vida e na amizade deles. E prometeram sempre serem amigos, acontecesse o que acontecesse, mesmo que os destinos deles seguissem caminhos diferentes, mas nunca perderiam contato.
Um ano depois, nessa mesma data, Jéferson, Juliano e Rodrigo, se reencontraram. Comemoraram a chance que alguma força do universo os havia dado.
Mas a vida seguiu o seu próprio rumo e Jéferson, Juliano e Rodrigo se separaram. Cada um foi pego pela força da realidade e eles, por falta de tempo ou de interesse mútuo, se separaram definitivamente. Quebraram o juramento que haviam feito há alguns anos atrás.
Jéferson e Juliano se encontraram mais algumas vezes, durante um tempo. Mas tudo era muito rápido e perceberam que as afinidades tinham desaparecido com o passar dos anos e isso tinha gerado uma distância muito grande entre os dois.
Ainda ouviam Cradle of Filth e Dimmu Borgir quando se encontravam. Mas a emoção de estar juntos, de compartilhar musica, saídas e bebedeiras tinha desaparecido totalmente. Era uma amizade mais estéril e que era baseada em lembranças, mais que na convivência que, um dia, eles tiveram.
Por fim, deixaram de se encontrar totalmente. O namoro de Jéferson com Alexandra também definhou com o tempo e os dois se separaram. Isso que, quando ainda eram amigos e se viam com quase todos os dias, ele comentava que Alexandra era a mulher da vida dele. Mas, o tempo muda tudo.
Os Anos Perdidos
A rotina é a mãe de toda a falta de expectativa de futuro. Somente as pessoas que se sentem desconfortáveis com a sua vida, ou que são inquietas por natureza, buscam incessantemente mudar para um novo horizonte,
Juliano sempre foi assim. Inquieto, mas sempre de maneira plácida. Raramente externava os seus pensamentos e pontos de vista sobre qualquer assunto que não lhe dissesse respeito. Não era um cara bonito, mas sabia ser comunicativo e simpático com as pessoas, e isso o fazia ser uma pessoa bem quista por quem convivia ao seu redor. Sempre buscava a praticidade quando enfrentava alguns problemas e isso era o que, algumas pessoas, admiravam na sua “persona social”.
Sempre sofria com problemas de rinite nas mudanças de temperatura. Morando no Rio Grande do Sul, um estado em que a temperatura muda muito drasticamente, era atacado pela sua alergia que entupia as suas vias respiratórias, o deixando fanho e ofegante. E nunca sabia se estava gripado ou sob os efeitos de alguma reação alérgica, pois os sintomas eram, um pouco, semelhantes.
Outras coisas, além do tempo, faziam com que tivesse “ataques de espirros” enormes, como pó, perfumes de qualquer natureza – até desodorantes -, ar condicionado. A parte imunológica do seu corpo tratou de aprender a lidar com esses pequenos incômodos do cotidiano e ele teve pouquíssimas reações a esses fatores externos. Aos poucos, seu organismo se adaptava.
Não tinha problemas em dormir à noite. Sempre teve um tipo de sono pesado, mesmo que com um barulho ou a televisão, nunca era atrapalhado. Luzes acesas – coisa que seu irmão Rafael fazia regularmente quando entrava no quarto – não o acordavam. Ele virava no beliche para evitar a claridade. Mas havia os sonhos. Em algumas noites, principalmente as de inverno, ele voltava a sonhar com o ritual que ele e Jéferson haviam feito atrás do seminário de Osório. Eram vívidos, quase reais. Era como se a experiência se repetisse em nível físico, de tão detalhada que era. Juliano até podia sentir o vento batendo no seu corpo como naquela noite.
Entrou para uma academia de musculação para colocar o corpo em forma. Em alguns meses, aproximadamente, dois, estava com os músculos dos braços, bíceps e tríceps, com uma definição considerável. O mesmo aconteceu com o peitoral e com as costas. Ele se desenvolvia muito rápido. Tanto que um dos professores perguntou se ele estava usando algum tipo de anabolizante. Usando da sua sinceridade natural, ele riu e disse que não.
- É memória muscular – falou uma das instrutoras -. Quando uma pessoa faz musculação, por um certo período de tempo e pára, mesmo que volte depois de alguns anos, o sangue preenche as fibras musculares com mais rapidez que para uma pessoa que está iniciando agora. É uma coisa muito normal de acontecer.
Ele estava feliz com a sua vida. Era um homem saudável e amava a sua família, era um bom, e reconhecido, amigo, e era muito criativo.
O Universo estava conspirando a seu favor.
O Reencontro
Dia 04 de janeiro de 2008
Já estavam na terceira cerveja e a conversa estava muito animada. A idéia de fazerem um site na internet com contos dos três, os empolgava. Os textos que cada um deles havia trazido, já tinham sido lidos e as opiniões eram dadas em alto e bom som.
De repente, Juliano empalideceu. Olhou fixamente para um homem que passou pela mesa deles com duas garrafas vazias e entrou no bar.
Tanto Rafinha quanto Marcelo perceberam a mudança súbita de comportamento de Juliano.
- Ô, meu, o que aconteceu? – perguntou Marcelo. – Olha só, Rafinha, como o cara está branco. Parece até que viu um fantasma.
- E eu vi – respondeu Juliano.
- Ih, cara, explica melhor essa coisa. E, aproveita e faz o seguinte, pede mais uma que o assunto está muito bom. Mas ta faltando ceva na mesa pra deixar ele melhor ainda – riu Rafinha.
Quando Juliano percebeu, o homem passou por eles novamente, só que com duas garrafas de cerveja fechadas. Ele, ainda meio deslocado com a visão o chamou:
- Jéferson?
O homem parou na saída da varanda sob a qual eles se encontravam. Olhou para a mesa, desconfiado, e se aproximou deles.
- Sim, sou eu. De onde você me conhece?
Aquelas palavras foram como um choque para Juliano. Como assim? Eles eram amigos, irmãos durante muitos anos. O que estava acontecendo ali?
Juliano, incrédulo, se levantou e olhou fixamente para os olhos de Jéferson:
- Tu não sabe quem eu sou?
- Sinceramente, não – respondeu Jéferson com uma expressão de riso. – De onde é que tu me conhece?
Mais um choque. Ele sentiu o corpo inteiro formigar como se mil descargas elétricas passassem, ao mesmo tempo. Ele não sabia como reagir.
Em alguns segundos de silêncio, ele analisou o homem parado na sua frente. Ele tinha certeza absoluta que era o Jéferson. O mesmo cabelo castanho acinzentado, os mesmos olhos verdades, o mesmo formato de rosto com os maxilares salientes. Era o Jéferson, sim. A mesma altura e a mesma estrutura física. Estava um pouco mais magro e mais musculoso, mas ele tinha certeza de que era o seu “irmão”.
- Olha, pega o número do meu celular. Se você se lembrar quem eu sou, eu gostaria muito de falar contigo. – Juliano falou o número de seu celular para Jéferson e este anotou na agenda.
Juliano voltou a se sentar, atordoado. Aquilo tinha sido irreal. Como ele podia ter agido de maneira tão fria com ele? Como ele podia ter fingido que não o conhecia? Eles eram amigos e irmãos.
Desde o reencontro, alguns meses passaram. Juliano nutria a esperança de que Jéferson ligaria para ele, mas isso nunca aconteceu. O inverno chegou, a estação de Juliano detestava, mas tinha aprendido a conviver pacificamente. A rotina tinha feito com que ele esquecesse aquele reencontro desastrado com Jéferson.
Numa tarde nublada e chuvosa, o celular tocou. Juliano olhou para o visor e não reconheceu o número. Quando escutou a voz, vindo do aparelho, ele sentiu um frio na espinha: era o Jéferson. Ele queria marcar um encontro com ele no Mercado Público, urgente.
A ansiedade que Juliano sentiu fez com que aquele dia se arrastasse. Ele chegou à parte superior do Mercado na hora exata que os dois tinham combinado. Ele procurou por Jéferson no meio das pessoas que estavam sentadas nas mesas dos diversos bares do lugar. Não o encontrou. Isso fez com que ficasse mais ansioso, e um pouco decepcionado. Ele olhava o relógio sem parar. Quando passou meia hora do horário combinado, Juliano percebeu que Jéferson não viria. Suspirou e começou a caminhar na direção da escada rolante que leva ao andar térreo.
- Mano – falou uma voz que ele conhecia fazendo-o virar rapidamente para trás.
Era Jéferson. Juliano não sabia se sentia alegria, alívio ou apreensão. Mas lá estava Jéferson, usando o mesmo sobretudo de couro preto que os dois tinham comprado juntos.
Eles se sentaram numa das muitas mesas que tem na parte superior do Mercado. Inicialmente, um silêncio sepulcral se instaurou entre os dois. Parecia que não tinham sobre o que conversar.
- Eu não uso mais o meu sobretudo já há algum tempo – falou Juliano para que ambos iniciassem algum assunto.
- Eu uso o meu quase sempre. Ainda mais quando está mais frio, como hoje – respondeu Jéferson, mostrando um desconforto enorme com a situação.
Silêncio novamente. Os dois olhavam para os copos de cerveja sobre a mesa, quase intocados.
- Bem, cara, eu preciso falar contigo. A respeito da última vez que a gente se encontrou – falou Juliano tomando a frente na conversa.
- Eu também preciso falar contigo. Eu quero explicar o que aconteceu e o porquê de eu ter agido daquela maneira – respondeu Jéferson, baixando a voz.
- Eu também quero entender. E quero uma resposta muito clara e objetiva praquela palhaçada – retrucou Juliano tomando um gole da cerveja.
Jéferson suspirou e voltou o rosto para as pessoas que circulavam pelo lugar.
- Só não sei se você vai gostar da resposta – falou ele com o olhar perdido para a multidão que se aglomerava na frente de um estande de “long plays” no pavimento do outro lado.
- Eu vou tentar gostar – respondeu Juliano carregando no cinismo. – Eu posso até entender, mas, pode ficar certo, que eu não vou concordar.
Com um olhar desafiador e uma expressão de raiva, misturada com tristeza, Jéferson se inclinou para frente e se apoiou sobre os cotovelos na mesa.
- Se vamos nos tratar assim, tudo bem. Mas o que eu tenho que te falar é muito sério mesmo. E eu vou te contar uma coisa que você não vai gostar de ouvir.
- Fala, “mano”. Eu vim aqui pra tirar essa história a limpo mesmo – Juliano falou assumindo a mesma atitude defensiva que o amigo havia tomado.
- Aconteceu uma coisa muito grave comigo depois do acidente – falou Jéferson. – Uma coisa que mudou a minha vida totalmente e explica por que eu agi daquela forma. Agora, você vai escutar ou não o que eu tenho pra te dizer?
sexta-feira, 26 de junho de 2009
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